Friday, April 25, 2008

AS CIGARRAS E AS FORMIGAS



Antônio Cardoso Neto

Eis que ao lado de um extenso e agitado formigueiro, erguia-se frondoso jacarandá, cuja basta copa sustentava um galho que servia de palco a uma estridente cigarra. Deu-se que num determinado momento, enquanto o desentoado inseto cantava sua estrepitosa melodia, o chão sob a árvore cedeu e o vicejante jacarandá veio abaixo, com tremendo estardalhaço, arrastando consigo a ruidosa cigarra. Bastou-lhe ter recobrado os sentidos, para que o indignado inseto esbravejasse:

--- É nisso que dá confiar na firmeza do solo, com essa quantidade de formigas que assolam o país!

E completou:

--- Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil!

Por estar vedado o uso de notas de rodapé, o autor se vê compelido a interromper a narrativa para informar que, a partir deste ponto, compromete-se a pôr fim a essa mania, que sói ocorrer nas fábulas, de colocar os adjetivos sempre antepostos aos substantivos. Dito isso, voltemos à narração.

A partir de então, a cigarra passou a alardear pelos dezenove ventos (a aritmética das cigarras é deplorável) a necessidade premente de acabar com as saúvas. Péssimo menestrel, porém arauto competente, o cicadídeo acabou por convencer todas as outras cigarras a levarem a cabo a gigantesca e nobre tarefa.

Sabendo que as formigas, assim como os pobres, adoram açúcar, as cigarras passaram a exterminá-las por meio do envenenamento sistemático de colônias inteiras. E tanto se empenharam em tal faina, que acabaram promovendo um formicídio colossal, após o qual, quase já não se viam mais saúvas em lugar algum.

Ocorre, porém, que, além de péssimas instrumentistas, as cigarras também são muito ignorantes em assuntos correlatos à entomologia. E tanto é assim, que o formigueiro a que a cigarra indignada se referia não era de saúvas, mas sim de formigas lava-pés (por que o plural de lava-pé não é lavam-pés?), as quais, talvez por ausência de solidariedade entre si ou por algum atraso tecnológico, nem haviam tomado conhecimento do extermínio de suas primas saúvas. A bem da verdade, algumas delas até que tinham alguma noção da história do extermínio, mas sabiam que esse negócio de serem primas das saúvas é invenção de biólogos e outros naturalistas, cujas opiniões, as formigas, ao menos as lava-pés, não costumam levar muito em consideração.

Pois bem. Estava o fórmico-proletariado agregando o valor de sua força produtiva às folhas, aos bolores e aos fungos por meio dos quais a formiga-rainha, detentora dos meios de produção, extraía mais-valia e explorava o diminuto povo lava-pé, quando uma operária começou a vociferar impropérios (é possível vociferar coisas que não sejam impropérios?) contra o modo de produção das formigas e a lançar imprecações e insultos contra a tirania da monarquia absolutista.

Em meio à correição, a formiga panfletária aproveitou para convocar as outras camaradas para uma assembléia deliberativa da mais alta importância no topo de um dos galhos secos do outrora frondoso jacarandá que caíra sobre o formigueiro. A multidão de obreiras espalhou-se pelas redondezas do vasto mirmecódomo descrito no primeiro parágrafo, e pôs-se a ouvir a eloqüência da formiga revolucionária.

--- Boa tarde a todos e a todas (puro vício, pois todos sabem que não há machos no formigueiro). A classe operária talvez não tenha notado que não se vêem mais saúvas neste país. Pois saibam que elas foram exterminadas pelas cigarras, aquelas lumpenproletárias que não fazem nada na vida além de encher o saco de quem quer trabalhar neste país. Temos de tomar alguma providência neste país, antes que aconteça o mesmo com a gente (na verdade, ela disse “a formiga”, mas devemos interpretar como “a gente”, por uma questão de registro coloquial).

Uma lava-pé dedo-duro, fura-greve e puxa-saco (é bem conhecido pelos filólogos e tradutores o fato de o dialeto lava-pé fazer uso excessivo de hífens) saiu dali sorrateiramente, e, poucos minutos depois, os galhos do jequitibá (era jacarandá, mas, de agora em diante, passa a ser jequitibá, o que, na opinião do autor, não deverá alterar em absolutamente nada o desenrolar da trama) já estavam tomados por milhares de formigas-soldado. A operária aquela (o autor se julga com amplo direito de, subitamente, começar a narrar como se fosse gaúcho, e abancar a falar desta maneira peculiar) agitou as patas e gritou:

--- Sempre tem de ter um filho-da-puta dum traidor na História deste país.

Ah, pra quê? Por pior que possa ser a traição de uma formiga puxa-saco, nunca se deve chamá-la de filha-da-puta, pois, como se sabe, todas as formigas são filhas da rainha, e isso equivale a ofender seriamente a honra da nobre monarca. E foi assim que teve início um enorme tumulto entre as formigas, uma se atracando à outra, indistintamente de serem soldados ou operárias. Quem já teve a infeliz oportunidade de presenciar uma guerra civil sabe que o canibalismo é inevitável, e que o decoro e os bons costumes dissipam-se rapidamente; sobretudo quando se trata de guerra entre formigas, na qual a bagunça acaba por tomar as proporções de um gigantesco e confuso bacanal, que os entomologistas costumam chamar de suruba mirmecológica, obviamente uma orgia lesbiana e, de certa forma, clandestina, pois não é segredo que entre as formigas, abelhas e cupins, somente à cúpula é permitido copular, como se diz por aí.

De repente, eis que surgiu a formiga-rainha, fazendo com que aquela formicação (juro que não será mais cometido nenhum trocadilho até o final da história) cessasse instantaneamente. Estabeleceu-se então grande excitação entre as operárias, que exclamavam extasiadas:

--- A formiga-patroa! A formiga-patroa! A formiga-patroa!

Enrolando uma folha de fícus no formato de um cone, e usando-a como megafone, uma formiga-milico anunciou:

--- Silêncio, plebe! A nossa graciosa rainha vai se dirigir a vocês!

Sua Majestade, com a circunstância que tais ocasiões exigem, demandou calma às súditas proletárias e ordem à soldadesca, declarando-se indignada com o infortúnio que se abatera sobre a antiga e quase extinta cultura e civilização saúvas. Depois de um discurso breve, porém bastante hifenizado, a soberana mostrou-se preocupada com o destino que as cigarras haviam imposto às saúvas, e informou que declarava guerra às cigarras e aos seus eventuais aliados.

Seguiu-se um longo conflito entre as duas espécies de insetos, ao término do qual centenas de milhares de cadáveres de cigarras jaziam sobre as relvas e os campos de todos os lugares. A vitória havia sido formigável (eu tinha prometido, mas não agüentei), e após a capitulação cicadídea e a assinatura do armistício, levas de cigarras migraram em direção ao centro do país, espalhando-se buliçosamente pelo cerrado. Passaram então a habitar a região do Planalto Central, onde, desprovidas da mais elementar noção de polifonia, harmonia e contraponto, cantam em um uníssono monotônico abominável, sem que isso cause qualquer espécie ou revolta entre os habitantes locais, acostumados que já estão ao assédio das duplas sertanejas que assolam o país. Estas sim, muito mais que as saúvas.

***

1 comment:

Alexandre Xixa said...

ei caba..
e ae como tá os preparativos pra festa junina!?!?
aguardo not´cias!
forte abraço!